Mandetta diz que erros do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia podem ter causado cerca de 350 mil mortes

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“Poderíamos ter evitado metade dos mortos. Se tivesse feito a campanha direitinho, falando todos a mesma língua, diminuindo a velocidade de transmissão, teríamos tido um resultado muito melhor”, avalia Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em sua primeira entrevista após a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter decretado o fim da emergência sanitária mundial.

Pela estimativa de Mandetta, dos cerca de 700 mil óbitos ocorridos no Brasil – que representam 10% dos registros no mundo – as mortes de 350 mil pessoas por Covid-19 poderiam ter sido evitadas se o governo Jair Bolsonaro não tivesse politizado o enfrentamento da doença e desmantelado a coordenação unificada do Ministério da Saúde no combate à pandemia.

Em balanço retrospectivo do enfrentamento da pandemia pelo governo federal, Mandetta afirma que Bolsonaro fez tudo o que um chefe de estado não deveria, naquele cenário de pandemia, se quisesse salvar vidas. “Quando iniciamos o enfrentamento, tivemos alguns princípios: proteger a vida incondicionalmente, manter a coordenação do enfrentamento no Ministério da Saúde, usando o SUS como meio e a ciência para decidir. Eram os pilares de nossa estratégia”, afirma Mandetta.

“Mas a ideia dele (Bolsonaro) era retirar o Ministério da Saúde do enfrentamento, deixando isso a cargo de governadores e prefeitos, ficando o presidente como crítico e oposição, transformando a vida de governadores e prefeitos num inferno”, avalia o ex-ministro.

“As pessoas acham que ele é louco, mas foi decisão política, com começo, meio e fim. Foi decisão deliberada e consciente, porque informei por escrito e avisei qual era a projeção de mortes nesse cenário de confusão informacional e de falta de coordenação de Brasília, caso fosse adotada a tese da imunidade de rebanho, dentro da máxima do Paulo Guedes de que entre economia e saúde, ficaria com a economia”, revela Mandetta.

A primeira providência de Jair Bolsonaro, depois da exoneração de Mandetta – e na sequência, a saída de Nelson Teich – foi desmantelar a estrutura unificada no Ministério da Saúde sob o Sistema Único de Saúde (SUS), com um grupo técnico de pesquisadores e profissionais das maiores instituições brasileiras, em contato permanente com os principais centros de pesquisa do mundo, para o embasamento do processo decisório.

Também a estrutura de comunicação permanente com a sociedade, para esclarecimento devido, evitando o charlatanismo nas mídias digitais, foi interrompida. A imprensa brasileira precisou se organizar em consórcio para acompanhar e divulgar as estatísticas da Covid-19, o que era papel do Ministério da Saúde.

“Fizeram uma intervenção militar no Ministério da Saúde, com o que tem de mais desqualificado no Exército, o pessoal de logística. Se o Exército tem generais da área da saúde, por que não colocaram um deles? Porque queriam uma pessoa servil, que sem compromisso com o combate à Covid-19”, afirma o ex-ministro.

“Foi uma decisão política que levou muitas pessoas à morte. E não foi decisão política tomada sem ter sido avisado. Fizemos três cenários, e o cenário mais pessimista que projetamos, foi exatamente aquele que Bolsonaro escolheu: o caos informacional e a desarticulação do sistema de saúde. Bolsonaro foi para esse cenário de forma completamente consciente. E eu mandei por escrito”, diz Mandetta.

Caos nos estados

Sem consenso em Brasília, os entes federados já não trabalhavam juntos. Governadores e prefeitos bolsonaristas adotavam a narrativa negacionista em confronto com governadores e prefeitos que seguiam as orientações científicas.

O grau de politização no trato à doença transbordou para diversas instituições brasileiras, inclusive o Conselho Federal de Medicina, que, em tese, foi criado para zelar pela boa prática médica.

“Chegamos ao fundo do poço. O Conselho Federal de Medicina valida essa narrativa negacionista e cria dois tipos de médicos na ponta: aquele que dava cloroquina e aquele que não dava. Politizaram a própria prática médica”, assinala Mandetta.

Atraso das vacinas

Depois de ignorar as oportunidades de adquirir de laboratórios internacionais as vacinas mais rapidamente, também a imunização foi politizada e Jair Bolsonaro iniciou a pregação contra as vacinas. “Politizaram a vacina, porque acharam que haveria imunidade de rebanho. Não adotaram a minha recomendação, que era de comprar a vacina cedo. Eu assinei e induzi a Fiocruz ao acordo de cooperação com a Oxford e disse vamos apoiar o Butantã com a China. Senão não teríamos tido vacina”, relembra Mandetta, registrando que na segunda onda da Covid-19, morreram, entre 31 de dezembro e 31 de julho, quase 380 mil pessoas.

“Foi um número absurdo de óbitos no primeiro semestre de 2021”, aponta ele. “E foi aquela barbaridade, aquela vergonha de Manaus. E o que fazem? Vão para Manaus e mandaram grupos de pacientes para todas as capitais brasileiras. Os pacientes com a cepa delta”, diz ele, explicando que uma mudinha da cepa foi colocada em cada lugar de concentração humana no Brasil.

“Foi o nosso desespero. Curitiba, São Paulo ficaram quase sem oxigênio. Não existe país no mundo em condições de produzir oxigênio para o país todo com consumo 38 vezes maior do que a média. Foi nosso maior pesadelo. Chegaram a morrer 4.500 pessoas em um único dia”, aponta.

Erros no plano internacional

No plano internacional, também houve erros, aponta Mandetta. A começar pela falta de transparência e de informações  no momento em que a doença foi detectada em Wuhan, na China.

“A Orgnização Mundial de Saúde (OMS) fez algo atípico: considerou uma emergência para a cidade de Wuhan e um alerta internacional. Mas o mundo estava sob a indefinição: não sabia se estava diante de um vírus que não iria sair daquela região, não conhecia a velocidade de propagação os números de contágio”, diz Mandetta.

Quando a Itália entrou em colapso, a China parou de exportar e começaram a faltar insumos como máscaras, agulha e outros, em todo o mundo. “Foi erro mundial concentrar na economia de escala a compra de elementos essenciais de um único país”, diz Mandetta.

Sistematização de erros e acertos

Para Mandetta, o momento agora é de o Ministério da Saúde promover congressos e reuniões de trabalho para sistematizar a experiência, identificando erros e acertos no enfrentamento da Covid-19, de modo a deixar a contribuição para as gerações futuras no enfrentamento das pandemias que virão.

“É uma questão de tempo”, diz o ex-ministro, que também aponta para o histórico precário das determinantes sociais em saúde no Brasil. “A Covid-19 foi doença infecciosa que ingressou no país pelas classes ricas, diferentemente do que normalmente acontece. Mas sabíamos que seria uma questão de tempo para alcançar as nossas fragilidades”, diz Mandetta.

“Quando vem uma doença assim, ela cobra um preço enorme da falta de políticas públicas para que as pessoas tenham moradias Como vamos falar de higiene com o Rio de Janeiro, que tem 40% das pessoas em área de exclusão social absoluta, sem saneamento?  E nós falando em isolamento para famílias que vivem em casas de 20m2, sem pia para lavar mão. Essa lição, as nossas determinantes sociais em saúde seguem como nosso ponto fraco”, diz ele.

Erros cometidos no enfrentamento da pandemia

No Brasil

– Jair Bolsonaro desmantelou o comando do enfrentamento à Covid-19 que em princípio fora centralizado no Ministério da Saúde. Com a centralização do processo de tomada de  decisões, pretendia-se garantir que o Ministério da Saúde, governadores, prefeitos em interação com a sociedade, prestassem a mesma orientação, evitando ruídos. Nesse comando centralizado estruturado por Mandetta, havia a participação de representantes dos conselhos nacional de secretários estaduais e municipais da saúde; pesquisadores e técnicos das maiores instituições nacionais, em interlocução permanente com centros internacionais de pesquisa, para a tomada de decisão forte e embasada do ponto de vista científico. Jair Bolsonaro fez intervenção militar no Ministério da Saúde e desarticulou toda a estrutura;

– Interrupção do diálogo aberto com a sociedade, em coletivas e boletins diários promovidos em princípio pelo Ministério da Saúde, para esclarecer as práticas ao enfrentamento, dentro da compreensão o vírus ataca a sociedade, o que requer o engajamento de todos;

– Interrupção da divulgação das estatísticas da doença, o que foi assumido pelo consórcio de imprensa, função que seria do Ministério da Saúde. Dentro da estratégia de desqualificar a gravidade da doença, ajudou a disseminar narrativas falsas, até mesmo relacionadas ao registro de óbitos;

– Ao adotar o negacionismo trumpista em relação à gravidade da Covid-19, desinformava a população sobre as formas de evitar o contágio – como o uso da máscara, lavar as mãos, não aglomerar;

– Politização extrema do enfrentamento da doença,  dentro da falsa tese de promover a imunidade de rebanho, não através da vacinação, mas pelo livre contágio, o que levou a mais mortes, à medida em que, sem controlar a velocidade da transmissão, o sistema de saúde colapsou em vários estados;

– Jogou as populações contra prefeitos e governadores que, na ausência da coordenação do Ministério da Saúde , faziam o enfrentamento: estimulou ao descumprimento das medidas de proteção;  atacou todas as medidas que destinavam-se a reduzir a velocidade da transmissão do vírus, promovendo aglomerações e defendendo o não uso de máscara; demorou a adquirir as vacinas e atacou essa forma de imunização.

Erros no plano internacional

– Falta de transparência internacional no momento em que foi detectada a doença; o mundo teve pouca informação até a doença alcançar a Itália e colapsar o sistema de saúde;

– Concentração mundial da compra de itens essenciais á saúde – máscaras, agulhas, em único país, no caso, a China, que respondia, por exemplo, por 94% da produção mundial de máscaras; um quinto da produção de respiradores, além de insumos para a produção de vacinas. Ao interromper a exportação para dar conta da demanda interna, o enfrentamento em todo o mundo foi afetado.

Fonte: EM

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